Verdade que papai, cujas sobrancelhas caídas, sobre olhos azuis sofridos numa eterna expressão de mártir, dera seus
próprios traços ao rosto santo, e talvez na minha cabeça infantil os dois se
misturassem um pouco, mesmo que papai, aos olhos de todos, tivesse tudo para
ser considerado “mimado” pela vida. Invisível, a cruz que carregava era sua
própria familiaridade com o caráter cego da dor.
Papai
fez tantas esculturas religiosas quanto fez corpos femininos sensuais,
cuja beleza, como que religião, ele cultuava.
Declarava-se ateu com orgulho, e durante minha adolescência, fase em
que geralmente procuramos o porque de tudo, tive com ele várias discussões
sobre a existência do Criador. No
começo, me frustrava. Na sua certeza da negação do Espírito, papai falava como
se fosse omnisciente. Pouco a pouco, percebi, no orgulho do seu ceticismo, mais
uma das ramificações de um machismo exacerbado. A aridez dos argumentos biológicos
que ele usava, a exatidão anti poética da realidade vista pela ciência, a
insistência em “ver para crer”, na sua maneira de falar, pareciam expressar,
mais que qualquer coisa, o fato de que um verdadeiro homem não precisar
“muletas” no “outro mundo”, ou proteção
de um pai celeste.
Desisti, então, de discutir com ele. Mas estivesse papai
esculpindo nus, fazendo bustos de
pessoas conhecidas, esculturas abstratas, ou arte sacra, era o Cristo que ele fazia com paixão; era
com o Cristo que ele, compartilhando o mesmo rosto, realmente comungava.
Havia um padre, amigo da familia, que lhe encomendava
arte sacra, e um dia pediu que papai fizesse uma estátua da Virgem em tamanho pouco
maior que o natural. Eu e meu irmão, ainda bem pequenos, nos quedávamos ao lado
dela, ainda em gesso, tão alva, simples, e contida na sua própria doçura, que
nos fazia sentir diante de uma
santa verdadeira.
Eventualmente, soube que logo que o padre
viu a escultura pronta, exclamou (sem
por isso, deixar de aceita-la) “ Que o
Sr. faça Jesus com o seu rosto, Dr. Edgar, se pode entender, mas a Virgem, pelo
amor de Deus!”
O fato é que a partir de seus próprios
traços, papai conseguia dar, fosse à Mãe, ou ao Filho, intensidade religiosa.
Isso me faz pensar no que disse uma vez
Lucio Costa, citando Le Corbusier, para explicar a sua própria posição
religiosa: “Sou ateu, mas tenho o sentido do Sagrado” …j’ai le sens du Sacré.
Numa humildade que,
infinita, era também convicção, Lucio
libertava a fé verdadeira dos limites das afirmaçōes verbais, quer dizer, do
reino do ego. Entre pensar que se tem fé
e tê-la realmente, existe o mesmo abismo que separa o ato de respeitar de um mero obedecer de regras, e que distingue o amor do medo.
Enquanto afirmações de fé, resultando muitas
vezes do medo, podem não expressar mais que a necessidade de ter fé, o sentido
do sagrado vive a omnipresença divina; a generosidade que vê a grandeza do
pequeno e do grande, do simples e do complexo, a generosidade que é o poder da humildade.
A
maneira como papai nos transmitiu
importância moral em tudo que nos ensinou revelava claramente o respeito
que ele mesmo tinha por princípios abstratos e invisíveis,
quer dizer, por uma autoridade maior. Não esqueço o dia em que,
na praia com ele e meu irmão, presenciamos,
ao nos afastarmos de um castelo de areia que havíamos feito, um grupo de meninos o destruindo a pontapés. Papai parou, para dar devida importância ao
que veio a nos dizer, e com tanta calma
quanto convicção, declarou: “Só se deve destruir alguma coisa, se puderem fazer
outra melhor...”
Bastou ele dizer isso uma única vez. Nunca mais esquecemos aquela lição, não porque se tratou de um decreto de papai, mas
porque, no respeito pela criação que ele mostrou, conseguiu transmitir o sentido do sagrado. Não
só entendemos a sua mensagem, como percebemos o ridículo da raiva, da inveja,
e da inferioridade que dão origem ao vandalismo.
Não é
qualquer um que tem o sentido do sagrado. Muitas pessoas que se pensam
religiosas, não o tem. Tenho certeza de que se o mundo inteiro fosse ateu, mas
todos em que nele habitassem soubessem o que respeitar, o planeta estaria hoje em
muito melhores condiçōes.
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