Passei momentos difíceis em Barcelona com saudades dele. Embora meu marido tenha confessado me achar maluca o suficiente pra chegar ao ponto de cancelar a viagem por causa “dele”, ficou chocado quando sugeri voltarmos mais cedo pra casa para que eu pudesse reencontra-lo logo. A cidade da religiosidade encantada de Gaudi e de tanta arte e beleza não aliviava a minha sensação de ter me traído por me afastar do “nosso” cachorrinho filhote. Na verdade, ele pertence `a nossa filha, que mora numa ala auto-suficiente da casa.
Quando de manhã ela abre sua porta de comunicação e logo o cachorrinho, que ela chama por Bowie, vem galopando no corredor, suas patinhas macias se sucedendo com a impulsividade aveludada de uma tempestade de pétalas dentro da minha cabeça, a alegria se anuncia pra mim como redenção do que até então tinha sido um mundo sério, auto-importante, e cobrador. A inocência de um cachorrinho, alegria em si e sem causa, é a alegria da própria alegria. Faz pensar que o mundo é bom por lhe ser lugar! O cachorrinho é presente, passado, e futuro. Ele é aquele bebê que tinha se perdido na gente, o aqui agora do amor e ao mesmo tempo a promessa de um novo amanhã. O cachorrinho é uma luz clareando o caminho, um presente que veio do amor, e uma doçura que faz acreditar.
Nosso Bowie é da mesma raça da cadela do filme A Dama e o Vagabundo. Tem orelhas compridas de pêlo longo formando cachinhos que parecem ter sido feitos por um cabelereiro. Tem os mesmos olhos sonhadores da Dama, o mesmo perfil com boca que parece cair antes de subir nas extremidades, de modo que olhado de lado ele é sorriso eterno, enquanto que de frente parece meio triste. Até assisti o desenho animado de novo por causa dele e percebi outra característica irresistível de sua raça no seu jeito de pedir carinho antes de qualquer coisa. Ao invés de pular em cima da gente, se deita de costas no chão e apresenta sua barriguinha.
Antes de viajar, eu andava pensando em como sou sortuda de poder curtir um cachorrinho sem precisar ser responsável pelo seu treino, por ter que leva-lo ao veterinário, ou atender suas necessidades básicas a não ser quando minha filha está na faculdade. Bowie cresce e muda bem mais rápido do que um filhote de gente, e em Barcelona, me perguntava como que sabendo disso pude me afastar da sua infância tão passageira… Mesmo que só fossemos ficar duas semanas longe, doía pensar que quando voltássemos Bowie poderia estar irreconhecível. E maravilhoso que inteligência, amor, e até ironia, que ele mostra no jeito de olhar pra mim, cabem dentro de uma cabecinha tão pequena como a dele, e com a intensidade com que seus olhinhos redondos expressam o que ele quer de nós. Não queria perder nenhuma etapa do seu crescimento, deixar de curtir o amor borbulhante da comunicação incrível que essa “criancinha” animal desenvolve com a gente a cada dia, sentindo, na união do mistério de sua alma com o milagre do seu amor, a resposta do universo a todas as perguntas. Os que pensam que a boa relação dos cachorros com os humanos resulta do puro instinto de sobrevivência, por serem eles dependentes de nós, deveriam notar que a alegria de um cachorrinho expressa a confiança do paraíso. Desarmado, ele transgride o mundo em que se deve lutar e nos faz sentir a liberdade absoluta, que começa por nos tornar livres de nós mesmos. Por isso, quando em Barcelona, eu preferia estar no paraíso…
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