Monday, November 18, 2019

A Iminência da Vida

Um dia, sonhei com uma estrela boiando no azul aguado do anoitecer. Única, aquela deslumbrante esfera de luz transformava toda a extensão celeste que a rodeava em sua exclusiva moldura. Primeira a marcar o céu, ela era conclusão do nascimento; puro mistério entre fim e começo. Sob um sentimento de respeito quase petrificante, refugiei-me no mundo do conhecido e pensei que aquele corpo celeste era a estrela Dalva. Venus, eu conheço voce, sei o teu nome, não tenho medo. Sem piscar, a luz radiante do círculo prateado, em ininterrupta continuidade, era definitiva.
Venus… estrela Dalva, só pode ser. Mesmo que o seu brilho milagroso e único nesse céu me assuste, voce é familiar; não vai me levar para dimensões desconhecidas, ou me trazer pensamentos estranhos, imaginei.
Mas a estrela começou a crescer, até atingir o tamanho de uma bola de bilhar, e ficou azulada, como a terra vista pelos astronautas  a grande distancia. Hipnotizada por minha própria admiração , consegui pouco a pouco discernir rios, florestas, continentes e mares nomeados individualmente na superfície deserta daquele corpo celeste, como se Deus lhes houvesse batizado antes de se tornarem solo para a civilização. Um novo planeta era anunciado, pronto a ser povoado. Pessoas poderiam pisar naquele corpo celeste, e começar um mundo novo.
A disponibilidade daquele ser perfeito do céu me confrontava com a iminência da vida, e me causava uma indescritível vontade de chorar. Aquela esfera perfeita e azulada, imaculada e nova flutuando no azul trazia a tristeza de ser só, e a alegria de ser única.
“Estrelinha, por que voce quer abandonar a sua completude? Pra que voce quer virar solo a ser cultivado e terra a ser trabalhada, ao invés de continuar sendo uma joia intocável? Por que tornar a sua pureza acessível, abandonando a majestade que vc tem no céu?
Minha estrela, ainda sem mácula, estava pronta para virar chão. A iminência da vida , no medo do mistério e na alegria do milagre, é reverencia diante da inocência, e do imprevisto. Abandono da perfeição pela posse de um destino, promessa de integridade no sofrimento da separação, ela é a ambivalência da liberdade.
Aquela esfera sagrada estava pronta para repartir o seu ser: a iminência da vida é a concepção de um bebê.
Estrelas nascem, iluminam, tornam-se unidades isoladas em toda sua plenitude, ao mesmo tempo que  generosidade no brilho que compartilham. Não vem também disso, a beleza de um céu estrelado? Da novidade sem fim de cada estrela, ao mesmo tempo que a ligação de todas no infinito que lhes fez nascer?
A iminência da vida. Tremenda fé da criatura, enorme generosidade do criador. Na entrega de ambos, um se separa do outro, fazendo, da distancia que os distingue, promessa de comunhão.
A iminência da vida é o gesto de desapego e grandeza da mão de Deus pintada por Michelangelo ao criar o homem na separação de Si; na permissão de um adeus que se transforma num encontro de dois seres; O mesmo gesto que trazemos no fundo do coração, do momento em que aceitamos ser a estrela do meu sonho, a oferta de solidez para nossos semelhantes, a semente no ventre de nossa mãe. Um novo brilho no céu.

Proust e a Ressurreição da Carne

As pessoas adoram rótulos. Proust é considerado agnóstico, por não declarar, com todas as letras, ter fé em Deus. Mauriac chega a dizer que Deus está ausente da Recherche. Que absurdo!
Pra começar, Proust diz que um livro com teorias é como um objeto com a marca do seu preço. Coerente com isso, ele,  ao invés de afirmar ter fé- o que implicaria uma posição que acredita na universalidade da fé, sendo portanto uma posição teórica (que se quer válida para todos) Proust transmite a sua própria experiência dessa fé, de modo que o leitor a vivencie, dentro de si mesmo. Proust não tem fé, ele se torna fé, ao escrever. Não acredita em Deus, simplesmente vivencia, o divino.
Ao relatar a sua experiência do espírito, no “Le Temps Retrouvé” ele se descreve, enquanto que narrador da sua obra, como o homem arrancado da cronologia do tempo, o homem que só pode encontrar seu prazer e nutrição na essência das coisas; o ser que só se revela quando, através de uma identidade entre o presente e o passado, ele vem a se encontrar no único meio em que pode subsistir, e que é fora do tempo.
Mas nessa atemporalidade nirvânica, Proust inclui a dimensão física de sua experiência, pois é através desta, quer dizer, através do que lhe vem pelos sentidos do corpo, que ele alcança a  eternidade do que viveu. Tal dimensão se refere `a sensação física e portanto particular que irrompe no presente, tendo primeiramente sido vivida no passado. Como quando cheiramos um perfume, depois de muitos anos em que o perdemos de vista, e o seu odor nos traz de volta o tempo passado em que este nos era habitual, com uma intensidade muito maior do que aquilo que nos é realmente presente.
Estando assim, numa fração de segundos, nem lá, nem cá, ou, por outra, lá, e cá, (no passado e no presente), sentimos o prazer que resulta da experiência de identificação entre o que ja foi e o que ainda é, quer dizer, o prazer da libertação da própria cronologia do tempo,  deleite de uma absoluta liberdade, e, ainda assim, de uma familiaridade immemorial, como que um reencontro com a eternidade. Aliás, vale aqui lembrar que, segundo Proust, o verdadeiro paraíso é o paraíso perdido.
Tal reencontro, por mais celeste que seja, não pode ser alcançado pelo pensamento puro, ou pela memória voluntária, desde que tem origem numa sensação física, causada pelo inesperado encontro com um objeto material no nosso caminho que nos desperta essas sensações, como o perfume do exemplo que dei acima. Desse modo, Proust dá prioridade `a concretude da dimensão física na própria busca da essência, ou elemento atemporal: na busca do espírito.
O instante transcendente em que o passado ressuscita, sendo vivenciado no presente, é também a ressurreição da fisicalidade desse passado. Assim, Proust mantém o elemento temporal na própria atemporalidade, dizendo “ Tantas vezes na minha vida, a realidade me decepcionou porque, no momento em que a percebi, minha imaginação, o único órgão que goza a beleza, não podia se aplicar a ela, devido à lei inevitável que só nos permite imaginar aquilo que não faz parte do presente. Mas eis que de repente, o efeito dessa dura lei se encontrou neutralizado, suspenso, por um maravilhoso expediente da natureza, que espelhou a mesma sensação no passado, o que permitiu minha imaginação apreciá-la, e no presente, quando a afetação dos meus sentidos pelo objeto que causou essa sensação, adicionou, ao devaneio da imaginação, aquilo que geralmente não se encontra nele: a idéia de existência, permitindo, graças a esse subterfúgio, que meu ser obtivesse, isolasse, imobilizasse, o que ele nunca percebe: uma parcela de tempo em estado puro.
Segundo Proust, o ser que nele renasceu quando, com tal tremor de felicidade, ele experimentou sensaçōes passadas tornando-se presente, só se nutre da essência das coisas, e só nelas  encontra a sua subsistência.
“Que um barulho que já foi ouvido, um odor outrora respirado, sejam novamente vivenciados no passado e no presente de uma só vez, tornando-se reais sem ser atuais, ideais sem ser abstratos, a essência permanente e habitualmente escondida das coisas é liberada, e nosso verdadeiro eu acorda, se anima, ao receber o alimento celeste que lhe é trazido. Um instante tirado da ordem do tempo recriou, em nós, para senti-lo, o ser tirado da ordem do tempo.”
Para resumir, esse ser atemporal, que prova o alimento celeste a ele trazido, se encontra, por um instante, no estado em que suas sensaçōes físicas se tornam reais sem ser atuais, ideais sem ser abstratas: no paraíso.
Em outras palavras, essas sensacōes físicas são concretas, e sem se localizarem no presente cronológico, são ao mesmo tempo ideais.  Esse estado nirvânico, que apresenta uma realidade física e portanto material, a qual, entretanto, não pertence `a ordem do tempo, é a ressurreição do elemento físico, e o instante liberado da cronologia do tempo (que Proust chamou de tempo em estado puro) concerne a existência concreta porém transcendente: a  ressurreição da carne.
O narrador atemporal de Proust, aquele que só vive da essência das coisas, (o nosso verdadeiro eu, nas suas palavras) é aquele que através da ressurreição das suas próprias sensações, tem a experiência de um flash do paraíso: ele é a alma de cada um de nós!

Saturday, November 16, 2019

Quem é Você?

Quem  é voce, que com sangue mostrou
O que fingimos sentir,
Para só precisar obedecer?
O que pensamos reverenciar,
E nas palavras só se distanciar?
Quem é voce, que ousou se deixar matar,
Liberando o todo de dentro de voce,
Amando para morrer,
Sofrendo para renascer?
Quem é voce, que honrando a terra
Conheceu o céu,
E que sem nada ganhar
Tudo realizou,
Que foi só você,
Para em Deus poder ser?
Quem é  voce,  constante revelação
Que pensamos adorar
Transformando em repetição?
Voce, que na mão dos homens,
A nenhum pertence,
Que é  perdão na agonia;
Vitória do Amor sobre a dor;
Plenitude no Mistério?
Quem é voce, que disponível a todos
É infinita ascensão,
E que na  cegueira de nosso pensamento,
Pode morar em nosso coração?
Quem  é voce, que não elevou a mente sobre a matéria,
A Sobrevivência sobre a sentença,
E sim o coração sobre a carne;
A Alma acima do medo?
Quem é voce que no grande viu o pequeno,
No pequeno enxergou o grande,
Voce, que lembramos por dever,
Buscamos sem nenhuma dor,
E amamos sem verdadeiro amor?

Thursday, November 14, 2019

Rob Finn; lembrança de Liberdade

Outro dia, meu filho Chris, que estava de visita e preparando um jantar com os vários amigos que vêm sempre visitá-lo, me chama la da cozinha, ” Tem uma surpresa aqui pra voce!” Desci correndo, e dentre os jovens animados Rob Finn se destacou e nos abraçamos,  na alegria de um reencontro que dispensava palavras.  Reconheci facilmente, naquele cara alto, de olhos grandes e escuros, o menino que há mais de quinze anos fora o melhor amigo de Chris, quando morávamos na cidade mais careta do país.
Rob foi especial pra mim naquela época. Lembro-me a primeira vez em que fui buscá-lo em sua casa, para  passar a tarde brincando com Chris. Os dois, que não tinham mais de onze anos, ainda usavam calça curta, e quando Chris me apresentou o amigo, enquanto eu manobrava o carro em sua rua, olhei pra trás, onde estavam sentados lado a lado, e no rosto sorridente que vi, notei logo os dentinhos caninos se sobressaindo sobre os outros, “Voce tem dentes de vampiro…que fofo, nice to meet you!”, falei, acariciando os seus joelhinhos de leve, `a guisa de uma saudação. Rob, com o mesmo sorriso, respondeu descontraído, “Nice to meet you!”.
Notei, entretanto, uma expressão meio zangada no rosto de Chris.
De fato, na segunda vez em que fomos buscar Rob, Chris me disse, “ Mãe, não fica “tocando” no meu amigo…ele vai pensar que vc quer fazer sexo com ele”. Entre a surpresa e vontade de rir, achei Chris tão exagerado que dei também um tom exagerado `a minha resposta, “ Voce acha possível que uma criança da idade dele possa pensar que a mãe do amigo quer sexo com ele? Pera lá…”
Chris não falou nada, e eu continuei a ser carinhosa com Robert, como era no Brasil com as crianças de quem gostava.   Chris se lembrava disso, e resolveu relaxar. Rob era o único que parecia totalmente `a vontade com adultos, e eu achava super fofo ouvir a sua vozinha fina, cada vez que me encontrava, “Hi Mrs Dodds!”
Ele era ótimo em qualquer esporte, e junto com Chris e outros amigos viviam entrando em campeonatos de snowboard, através do país.
Um dia, quando fui buscar Pat, um dos outros, convidaram-me a entrar. Pat ainda não estava pronto, e enquanto eu falava com sua mãe, alguns dos seus irmãos se aproximaram. Durante aquela troca de assuntos vazios entre ela e eu, um pequeno anjo aparece de repente, e, bem baixinho, fica ali parado, observando-nos com olhos azuis enormes e cintilantes, no rosto rosado cheio de sardas, sob cabelos tão louros que prateados. Antes que sua mãe me dissesse quem era, não resisti afagar aquela cabecinha que parecia um raio de luz, “ Este é John, o mais moço, tem cinco anos…” ela falou, enquanto o menino enrubescido fez uma expressão furiosa e se esquivou, “ It is all right, John, behave…” a mãe lhe disse entre risos histéricos, como se compreendesse a sua reação, e lhe pedisse para ter paciência com a estrangeira que fôra "indecente" com ele.
A ficha caiu. Lembrei que minha filha, quando tinha sete anos, chegou do colégio uma vez e me disse toda orgulhosa, “Mãe, hoje eu aprendi que cada um de nós tem uma bolha invisível `a sua volta, e a gente não pode pisar dentro dela e chegar muito perto da pessoa. É a bolha da privacidade, que a gente tem que respeitar!
O que???
Pensei que ela estava brincando, pois no Brasil e nas culturas Latinas que conheço, não se traça limites imaginários nem `a volta de quem tem doença contagiosa. Lembrei-me da fúria do irmão de Pat….. “Que gente esquisita…”, pensei, “Será que tem medo fóbico de germes, ou será que veem sexo em qualquer contacto físico?”
A lembrança de uma das lavagens mentais do Admirável Mundo Novo me deu a resposta: “ Esterilização é Civilização”.
Evitar germes também significa evitar contacto físico, e contacto físico, quando tão discriminado, evoca sexo e passa a ser duplamente indecente. O jeito era mesmo eu aprender a “me comportar”. Com Rob, entretanto, nunca houve problema. Devo dizer que ele era o único a oferecer ajuda para arrumar a bagunça que faziam em nossa casa, quando brincavam. Quando decidi aprender Snowboard, ja com quarenta anos, e ia praticar na única montanha perto da cidade, morria de vergonha de envergonhar meu filho, pois além de ser muito mais velha do que a garotada, era também bastante pior. Procurava ser discreta, e nem chegar perto das pistas íngremes que eles escolhiam. Uma vez, entretanto, não houve jeito de evitar encontra-los na fila do “ski lift”. Cada um olhou para uma direção diferente, mas Rob, ao contrário, me encarou e disse, em plena nevasca, “ Hi Mrs. Dodds!”
Que educação impecável! Como podia ele agir tão diferente dos outros? Seria porque seus pais ja tinha se divorciado e estavam cada um no segundo casamento, como eu e Steve, e isso dava a Rob uma mente mais aberta? Seria também o fato do pai ser dono de um bar boêmio, aliás o único da cidade, que os impedia ser caretas? Ou simplesmente essa liberdade resultava do próprio temperamento de Rob?
Impossível dizer. So sei que além da maneira com que me tratava, o menino tinha personalidade e auto-confiança. E só mesmo a auto-confiança permite a alguém ser desarmado e aceitar carinho, sem precisar interpreta-lo.
Os Estados Unidos é um pais que orgulhosamente se considera exemplo de liberdade. Mas a cultura Americana se apoia em regras pra tudo, mesmo que não explicitamente verbalizadas. Regras sociais, regras de como andar na rua no lado certo, regras de manter distancia, regras de não olhar no rosto de quem não se conhece, regras de não beber álcool na rua, nem que seja simplesmente na calçada do bar em que se entrou. E as importantes regras de respeitar a “bolha invisível”!
Não deixo de gostar daqui, mas para mim, liberdade é ser desarmado. Liberdade é poder receber carinho, sem ver nele perversão. Liberdade é não ter que imaginar germes no azul do ar.
Liberdade é poder ver charme nos caninos de um menino, sem fazer ele ficar se torcendo de vergonha.
Aliás, dessa vez em que reencontrei Rob, fiz todo mundo rir, inclusive ele próprio, quando lhe perguntei, “ E os teus dentes de vampiro?”

Tuesday, November 12, 2019

Chapéu Vermelho

Prestes a passar pela segurança, no aeroporto de Denver, já atrasada e esbaforida, entrego meu passaporte e passagem para a agente TSA, uma mulher que, ao me olhar, logo pergunta, com um sorriso iluminando-lhe o rosto, se estou animada para viajar. Pergunta isso, pensei, em vista da sua especial simpatia, num meio em que somos geralmente tratados com frieza, quando não rispidez, porque imagina que estou fazendo uma viagem cheia de glamour e sofisticação, no mínimo por estar eu “coroada” com meu chapéu vermelho, e envolta num xale esvoaçante.
Ja aqui nos Estados Unidos há séculos e sei que americanos amam reconhecer mérito, não so em esforço e trabalho, mas na aparência das pessoas, quando a consideram bem produzida. Naquilo que acham ter, talvez, um toque da cultura francesa que tanto admiram e que, pra eles, é quase que uma fonte de fetichismo e mistério. French kiss, denominam, por exemplo, o beijo de língua- porque lá no começo do século XX os franceses ganharam, no mundo que fala inglês, a reputação de serem mais apaixonados sexualmente- French fries, intitulam o que simplesmente chamamos “batatas fritas”, mesmo que estas possam ter sido inventadas na Bélgica, e por aí afora.
Esta simpática moça tentando escanear minha passagem não tem ideia que me produzi assim para compensar a chatice e o caráter repetitivo de uma viagem com fins puramente burocráticos a Houston, onde fica o consulado brasileiro que rege o território em que moro. “Não estou nada animada, vou a Houston por motivos burocráticos, e ja estou pra perder o avião”, informo, para que ela também se apresse. “Aww…”, ela responde, o sorriso virando expressão penalizada, “Não precisa ter pena de mim”, pensei, “ o melhor que vc pode fazer é me deixar passar o quanto antes”…
Mas a passagem não escaneia, e um outro agente que devia lhe ser superior corre para ajudar, “ainda bem, afinal imprimimos o bilhete em casa, porque essa alternativa é oferecida pela própria companhia aérea”, penso, tentando me acalmar. O homem, também, não consegue nada, e a moça me diz aborrecida, que devo voltar ao guichê da companhia e pedir outra passagem. “La no sexto andar”, ela diz, e acrescenta, entregando-me um cartão cor de laranja, “voce corre lá e na volta mostra isso, para poder ir para o começo da fila, agora vá rápido no guichê, pelas escadas rolantes lá do outro lado”, informa, detectando a total confusão no meu rosto. “Mas como a companhia aérea apronta uma dessas?” ainda consigo reclamar, enquanto saio dali aos trancos e barrancos, atropelando todo mundo `a volta, minha bagagem de mão dando trambolhadas nesse ou naquele inocente passante que “ousa” estar no meu caminho. Em resposta aos pedidos de desculpas que vou exclamando a torto e a direito, só ouço opiniōes amáveis, “Que chapéu lindo”, me dizem, gregos e troianos. Mas o sofrimento de pressa nos força o egoísmo de nos sentir com direito a só considerar nossos próprios interesses, e lá vou eu distribuindo desculpas mecânicas, enquanto ouço elogios sinceros.
Como é longe esse guichê… não vou conseguir, que m…, vou dizendo em português pra mim mesma, enquanto subo as escadas rolantes de dois em dois, competindo com esses degraus metálicos, a bagagem de mão, dois volumes sobre rodinhas, se despencando neles, o suor começando a escorrer por baixo da minha camisa. Chegando ao primeiro guichê que vejo, me informam que o da minha companhia é o outro, na extremidade oposta, e mais trancos vou dando naquela direção, enquanto anuncio pra todos estar `a beira de não conseguir pegar o avião. Que bom, não tem fila, não tem ninguém …, ainda me digo, atirando-me ao guichê indicado. “Se vc não chegar a tempo, volte aqui”, diz a funcionária entregando-me nova passagem, enquanto ja vou me lançando, novamente, de volta `a polícia de segurança. Como esperado, vejo multidōes se arrastando em funil para os raio x, e, tomando fôlego, ergo meu papelzinho cor de laranja, violando todas as filas. Daqui e dali, ainda posso ouvir, “I love your hat!” mas tenho que prosseguir, indiferente. Consigo passar, e, mesmo que nada tenha apitado, sou parada por uma agente corpulenta do outro lado, “ Tenho que te examinar”, diz ela, apontando para um gráfico na saída do raio x, que delimita uma extensão quadrada em torno da minha area genital, “voce tem a opção de irmos fazer isso naquela sala privada”, oferece, no mesmo tom autoritário. Penso que tudo isso é sexo sublimado, histeria coletiva, e lhe digo pra me examinar ali mesmo, “who cares…” ainda digo, re ensaiando, mentalmente, a fantasia de tirar toda minha roupa logo antes de passar pelo raio x, dizendo à policia que viria me prender escandalizada, “tudo pela causa da segurança!”, ou me fazendo de “selvagem” ignorante. Como iriam ficar furiosos os caras, fico pensando, enquanto a mulher passa as mãos por todo o meu corpo, fazendo perguntas idiotas a respeito do que eu levo nos bolsos, ou de onde está o “metal” que o gráfico acusou, “so pode ser o fecho da calça”, respondo, desprovida do meu chapéu escudo, que passava sob o raio x, coitado, em meio a toda aquela tralha sendo examinada. Já livre, recolho minha bagagem de mão, recoloco o chapéu na cabeça, e volto a apostar corrida com o tempo. Dentro do trem, nem sei em que ponto sair, mas ouvindo esse homem com bafo de álcool e roupa estilo cowboy elogiar meu chapéu, lhe peço informação. Ele me orienta, parecendo ate pronto para me seguir, pouco importa. Ofegante, chego ao portão do meu avião, esse 38 C que me ecoa na cabeça, e vejo que ainda estão embarcando, que bom e que saco ao mesmo tempo, mas os elogios continuam, o chapéu parece me dar todas as licenças. Já no corridor apertado do avião, ainda vou repetindo mentalmente 38 C, 38 C, esquecendo que tal designação correspondia apenas ao portão ja ultrapassado, e não ao meu assento, que então imagino ser la no final, aos trancos e barrancos, na corrida em encontrar lugar no compartimento de cima, para parte de minha bagagem. Chegando `a fila 38, finalmente, vejo todos os assentos ocupados, que folga dessa gente, tenho que exigir meu lugar, dessa senhora que se encontra sentada na letra C. Ela me olha com certa indignação, e eu lhe mostro minha passagem, com toda convicção. Sou agora olhada com perplexidade : ao invés de 38 C, a passagem mostra 7 D, “ …Meu Deus, estou completamente confusa”, desculpo-me, ja tentando voltar la pra frente, nadando contra a corrente humana que se espreme na minha direção. Passo um aqui e me encolho um pouco, passo mais outro, e ja tenho que pedir desculpas duplas, triplas, até quadruplas, pelos trancos da minha mochila no ombro ou cabeça de passageiros devidamente sentados, mas tenho que prosseguir, a fila de gente ainda entrando no avião parece não acabar, que sufoco, não vou encontrar lugar pra minha mala de mão, ainda estou longe da fila 7… Que bom, aquele comissário de bordo la na frente está me chamando, vai fazer os outros me deixarem passar, ja vou pensando, sob a autoridade do chapéu “escudo”, que o homem deve ter visto la de onde se encontra, causando alvoroço e caos, “boiando” mesmo, acima desse sufoco, contra à corrente. Mas o comissário, com melhor senso que eu, só faz indicar o espaço largo da porta de emergencia , dizendo-me para esperar ali, até que todos sentassem. Paciência, tudo bem.
Consigo chegar a Houston e ao hotel reservado, que é perto do consulado brasileiro. Tendo retornado da França três dias atrás, ainda estou sob o efeito da defasagem horária, da diferença cultural, e ainda pior, das saudades.   A troco de que, essa mulher que me registra está com tal ma vontade, não tenho ideia, mas a relutância com que responde qualquer coisa me enlouquece, será que esta me achando “metida” com esse chapéu? Fazendo o que ela me diz entre dentes, ao me entregar a chave do quarto, vou para os elevadores e aperto o número do meu andar ali mesmo do lado de fora. Uma luz se acende sobre o elevador em que devo entrar, e que so vai mesmo ao meu andar, pois, no seu interior, como grunhiu a mulher da recepção, não ha botōes numerados. O inferno da frieza e anonimidade humana começa: tudo nesse hotel gigante é indicado por gravaçōes, avisos luminosos, combinação de botōes, e longas esperas no vazio. Pra piorar, me dão um quarto de cadeirantes, bem perto dos elevadores, cujo barulho metálico é constante sobre a minha cabeça, ou dos lados , nem mais posso saber, o trósso parece assombrado. O quarto, enorme, árido, e impessoal, consegue ser mais desagradável do que a antipatia da mulher que me registrou. Não entendo nada desse telephone que eles tem, em que aperto botōes e só ouço de volta gravaçōes frenéticas cuja repetição não consigo dar fim, mesmo apertando outros botōes. Estou morrendo de fome, quero pedir comida, por que vim parar aqui? A antiga, mas sempre popular música dos Eagles, Hotel California, que diz, “you can check in any time you want, but you can never leave” me vem `a cabeça, porque ja estou `a beira do pânico, duvidando ser capaz de sair dessa monstruosidade, tanto menos conseguir fazer tudo que devo fazer, amanhã cedo. Sem uber no meu cellular, vou ter que contar com o hotel para me arranjar táxi, e ainda me conseguir o endereço de algum correio onde tirar a “money order” com que pagar os serviços do consulado. Sabe-se la porque, só aceitam ser pagos dessa forma. Ja é a segunda vez que venho a Houston pra conseguir a mesma procuração, tendo eles cometido erros que não detectei, no primeiro documento que me fizeram. A fome aumenta, são onze da noite e não consigo alcançar ninguém nesse telephone, nem mesmo contactar a recepção. Por que sou tão incompetente? Vou ter que voltar la em baixo, na humilhação de pedir ajuda…
Fora do quarto, corro para os elevadores, e aperto o botão zero ali mesmo do lado de fora, imaginando este corresponder ao andar da recepção; nada acontece… estou ilhada aqui… deixa apertar de novo… Outro longo momento que passa, e ainda nada… O pânico se aproxima, melhor apertar esse gráfico de cadeira de rodas, isso vai fazer com que se mexam… Mas se mexam… “quem”?…. Não tem mesmo ninguém; outra gravação desagradável diz que meu “itinerário” não foi compreendido. “Que itinerário, seus imbecis?”, desabafo, voltando freneticamente a apertar o zero. Afinal, um dos elevadores se abre, e me leva pra um sub solo gigantesco, obscuro, e ligado a outros hotéis. Vejo que esse homem suado e de shorts, saindo de alguma sala de ginástica, percebe a minha  aflição, quero  pegar o serviço de apartamento ainda funcionando,  pergunto-lhe onde fica a recepção do “meu” hotel, ao que ele informa corresponder ao número dois. Acima de nós, o número um era outro subsolo gigantesco. Que tipo de lógica idiota é essa? Sera que tudo aqui é feito pra enlouquecer, ou para pessoas já loucas?
Lembro-me de Paris, onde não me senti incompetente. Onde se podia ver rostos e falar com pessoas, no pequeno hotel em que fiquei. Lembro-me da arte que vi, da boa comida, da atmosfera íntima dos bistros e ruas estreitas. Da naturalidade das pessoas se encarar e conversar, mesmo sem se conhecer. Revejo até o aeroporto Charles de Gaulle, que prefiro a todos os outros que conheço. Foi là mesmo que encontrei, na loja Hermès, meu chapéu vermelho, sozinho na vitrine, sobre uma superfície branca, generosamente larga, que enfatizava a harmonia das suas linhas, a continuidade da sua cor, transformando-o num depoimento em si mesmo. Um “em si”, pra falar em termos de Kant. Assim como o urinol que Marcel Duchamp transformou em arte, tirando-o do contexto utilitário, quer dizer, tornando-o objeto de contemplação, sobre espécie de pedestal, os designers Hermès souberam o que faziam apresentando o chapéu por si próprio, fora de qualquer cabeça. Deram-lhe a independência da obra de arte, porque sabiam que merecia. Sentindo essa liberdade, e com algum dinheiro sobrando, me permiti compra-lo, sem pecado. Quase como segunda identidade. Ele correspondeu, através da luta nos aeroportos americanos. Mas nesses aeroportos, ainda há “pessoas”. Já, no antro de desumanidade que é o hotel, de que finalmente consigo sair, ninguém fala a sua lingua, ninguém conhece a liberdade que representa. Muito pelo contrário, vivem sob o jugo sem rosto das gravaçōes, combinação de botōes, gráficos imperativos, e abandono do coração.

Benki

Sempre vou lembrar quando o vi a primeira vez. Sim, ele é quem inspirou a linda musica Txai, de Milton Nascimento.
Eu e Edgar, meu irmão, o esperávamos no aeroporto, e o longo atrazo de seu avião me deu tempo pra relembrar seu rosto, cuja expressão, nas fotos que eu ja tinha visto dele, revelava intensa vida interior. Naturalmente, viria vestido como um de nós; era preciso abstrair seus traços da pintura indígena que os adornava nas fotografias que vi- assim como seu cabelo e a forma de sua cabeça, do chapéu Ashaninka com que aparecia nelas- sem deixar de observar o irritante abre e fecha do portão automático de uma das salas de chegadas aéreas do Santos Dumont, para poder reconhece-lo tão logo aparecesse.
O abre e fecha se repetia frenético, mas as pessoas que saiam não tinham nada a ver com Benki. Me aproximando da saída , comecei a tentar localiza-lo do outro lado, durante os segundos em que as portas se abriam para cuspir alguém pra fora daquele espaço ansioso, onde passageiros, ainda despojados de sua bagagem, como que roubados de sua identidade, podiam ser vistos desamparados e anônimos `a beira de uma esteira, na espera de seus pertences. Mas nem sombra de alguém que pudesse ser Benki.
Edgar decidiu ir vigiar a outra saída de passageiros, quase que na extremidade oposta do aeroporto, mas dali a alguns momentos, através de uma das brechas entre um homem gordo e a borda das portas que o expeliam, avistei la dentro um rapaz de camiseta e jeans, vestido como “um de nós”, mas inteiramente diferente de todos. Mais do que esbelto e alto, ele me apareceu etéreo, seu corpo parecendo responder a uma outra dimensão, trazendo-me `a mente as primeiras imagens dos alienígenas no filme Close Encounters of the Third Kind, quando estes, fora da nave, são silhuetas que se aproximam, ao mesmo tempo que parecem prestes a se desvanecer no ar. A delicadeza de Benki é a sua força.
Ao invés de grudado `a esteira de bagagens, como os outros viajantes, Benki a observava de uma certa distancia, como se um pouco perdido, ou melhor, como se tivesse todo o tempo do mundo. Mais tarde, ja na casa de Edgar, constatei que, mesmo na urgência  com que vive, Benki tem todo o tempo do mundo, pois que responde a uma causa que o transcende. Nos momentos em que pudemos te-lo conosco e nossos amigos próximos, entre os milhares de chamados de toda parte, por todo tipo de pessoas que o seguem, fiquei realmente admirada. Benki é pajé e líder dos índios Ashaninka que moram na fronteira do Brasil com o Peru.
Esteve com cada um de nos em particular, e, clarividente, disse, de imediato qual era o principal problema de cada um, rezou-nos individualmente, soprando fumaça de seu cachimbo em nossa cabeça, aspirando de nosso peito as energias ruins que cuspia pela janela,  enquanto entoava rezas em sua língua.
Não é bastante relatar o alivio diferente que senti de sua pajelança. Isso poderia fazer pensar em auto-sugestão, assim como acontece com os cobaias que tomam placebos e alcançam resultados positivos do que seria, supostamente, remédios novos . Basta dizer que, alem de qualquer pajelança, ou do que Benki nos contou de si mesmo, o que na verdade mais me impressionou foi a sua presença. Ver para crer, ou talvez, crer para poder ver. Fica a critério de cada um.
Benki é multiforme. Parece  uma criança, ao mesmo tempo que um homem moço, e um ser vindo de tempos imemoriais. Em sua graça, naturalmente nobre, evoca anjo e principe ao mesmo tempo. Benki é famoso não so por abrir caminhos para as pessoas, ver dentro delas, muitas vezes curando-as na origem, que os médicos sempre ignoram, das doenças que apresentam, mas pela sublime causa de salvar a floresta e o meio ambiente, ja tendo levado sua mensagem a vários países em encontros com lideres de diferentes nacionalidades, e mobilizado muita gente, que a princípio era indiferente a essa causa. No reflorestamento que faz com o grupo de rapazes que lidera, ja plantou dois milhōes de árvores. Diz ser a re- incarnação de seu avô, que lhe deu a causa de salvar seu povo, sua cultura tradicional, e o respeito pela bio diversidade.
Alternando a realidade de fatos com a verdade de sua herança mítica, tudo que Benki diz é fascinante, mas o que torna impossível não acreditar nele é a intensidade de seu ser. Em todos os momentos em que estive `a sua volta, pude senti-lo integralmente presente, ao mesmo tempo que arrebatado. Unindo esses dois extremos, Benki é humilde, ao mesmo tempo que consciente do seu valor. Transmite o foco inabalável da coragem incondicional, como se seu ser fosse uma oferta, por assim dizer, ou estivesse constantemente `a beira do sacrifício. Ja passou por varias ameaças de vida por parte de traficantes e madeireiros, e segue sem medo. Me fez pensar na entrega de Jesus ao Pai. Lembrei também da paixão, como constante dor e renascer. Na sua calma firme, Benki é apaixonado.
A fé que Benki transmite vem da comunicação direta com a sua alma, sendo ele despojado de todas as camadas de defesa atrás das quais nos escondemos. Sua coragem é a nudez da integridade, a liberdade de não se guardar contra nada no futuro, e não se agarrar a nada do passado.
Coragem é o infinito da presença: Sincronia com o destino.

Ayahuasca, a Reconciliação


Disse Oscar Wilde que “Patriotism is the virtue of the vicious”. Gosto de lembrar isso porque considero cada indivíduo um cidadão da humanidade. Nesse ponto de vista individualista, é como se rótulos, e tudo que não seja o ser inato, não tenha importância. Ser francês e falar francês, por exemplo, são rótulos que podem ser trocados, se a pessoa quiser mudar para o Canadá, para virar “canadense” e falar inglês, e por aí afora. Por isso, disse Sartre, que o homem é constante poder de se auto criar.
Mas alem dessa indiferença a limites geográficos e culturais, eu ressentia o Brasil na maioria das lembranças do que vivi la, como a adolescência alcoólatra, a anorexia quase fatal, a neurose doméstica, enfim, tudo que começou com a juventude. Esse ressentimento obviamente me ajudou a vir morar aqui e continuar a viver como árvore transplantada. Mesmo assim,  lembrava meu lugar de origem com um espinho no coração, entre saudade e revolta. Até que pouco a pouco, em instantes de plenitude, Ayahuasca resgatou, pra mim, o tempo da relação primordial que se tem com o mundo antes da palavra; da “tradução” de outrem; do conhecimento do dever, e de toda essa mediação que enfraquece, distancia e finalmente quebra a comunhão original que temos com o que nos rodeia, na pureza da sensação e no imediatismo do sentimento, antes do imperdoável surgir da  racionalidade.
Ayahuasca retornou o tempo em que eu e o que me rodeava vivíamos num mesmo ser, como a praia de Copacabana na época em que, diante dela, tive minha primeira morada neste mundo, quando   o mar, em frente a nosso apartamento, estava também dentro de nós. Numa cozinha que era imensa pra mim, eu tinha meu lugar a uma pequena mesa, junto a meu irmão, na sua cadeirinha de bebê. Tudo era muito alto, numa constante mutação de branco, para azul, para a cor do vento, porque o vento soprou o mar pra nós, inundando tudo com o seu sussurro que se misturava `a musica das ondas e ao o azul omnipresente do oceano. Texturas se interpenetravam, num movimento de cores que era ar marinho e elemento liquido ao mesmo tempo, frescura que vinha pra cozinha e pro nosso coração… Objetos e emoções, além de superfícies fixas e rótulos de palavras, criavam a mesma intensidade alegre que anulava os limites de cada coisa, transformando tudo na manifestação de algo maior.
A cozinha era o mar dentro da cozinha, o mar la fora era nossa cozinha misturando-se nele, a brisa do mar era respiração do corpo e do céu, o azul das ondas e o branco da parede eram diálogos entre o fora e o dentro, o dentro e o fora. Nosso lanche estava em cima da mesa, e a voz grossa do mar nos dizia pra comer através da nossa mãe, que virava o rosto em outra direção pra poder fingir ser ele, voltando então a nos encarar e dizer, na sua própria voz, que o mar queria que ficássemos fortes, devíamos comer, o mar mandou…
Saber que era mamãe falando como o mar não me impedia acreditar que era o mar que falava com a gente. Tudo podia ser tudo, na unidade que as criancinhas sentem em  sua ignorância da rigidez dos conceitos e limites verbais. Cada vez que mamãe repetia o pedido do mar, era ele que eu ouvia, e era ela que eu amava por se tornar ele. Esse entrelaçar de cores, seres, brisa e voz, na cozinha do meu primeiro lar, retornava a unicidade daquele momento na experiência de uma essência comum do som,  tato,  vista, fora e dentro, mãe e mar, coração e vida.
Naquelas manhãs douradas, mamãe nos levava `a praia, nos banhava no mar, Edgar pequenino gritando e esperneando, e nos levava de volta `a nossa toalha naquela areia infinita, para voltar e mergulhar sozinha. Afastava-se, na direção de uma onda maior que tudo, e que distante parecia tão perto, no seu verde que não parava de crescer, espelhando o sol como  estrela liquida e viva, atraindo e assustando, esticando e encolhendo com o pique e curva da massa fluida no seio da qual brilhava essa estrela, coração pulsante e aniquilador; divindade pronta `a explodir e abençoar.
Determinada, mamãe se aproximava do luminoso e imperativo coração de sal e luz, ficando mais e mais longe de nos, tão pequeninos na toalha rectangular, cuja precariedade, sob o comando materno de que sobre ela esperássemos , se transformava, como uma bandeira, na afirmação de nosso território, sob o sol quente de Copacabana. O mar, o céu, a areia, a onda e seu coração, os passos de mamãe na sua direção… Tudo era imenso. Não em tamanho, algo relativo, que não podia fazer parte de um universo em que as coisas só são vistas com o coração, mas em significado. Aquela imensidão era o calor gostoso sobre minha pele arrepiada, os pingos de agua salgada escorrendo do meu rosto e desaparecendo na toalha em que meu irmão ainda bebe estava deitado, em submissão e maravilhamento, tão redondo e macio perto de mim…
Nós dois, um amontoado quase amorfo de curvas e formas molhadas no tecido quente que, naquele gigantesco espaço, continuava a ser nossa ancora na autoridade de nossa mãe; na entrega da inocência. A onda podia engolir ou retorna-la pra nós, mas ainda assim nossa confiança tudo abrangia. Água salgada tinha gosto de ameaça e beleza em minha boca. Aquele momento reproduziu-se em outra onda, invisível porém gigante, de alivio e felicidade.
Ayahuasca permitiu que minhas raizes se revelassem dentro de mim, na imensidão de praias atemporais de um mar sem fim, reconciliando-me, paradoxalmente  com o solo mais orgânico e particular de onde nasci. Embora sem patriotismo, senti orgulho de vir de um chão nacionalmente comum com a floresta do chá, e com as culturas nativas que o descobriram.   E também, do Brazil ainda ter índios, e dessa floresta conter cerca de 50% da biodiversidade mundial, tendo sido mostrado, em pesquisas recentes, que ela retira mais gás carbônico da atmosfera do que emite.
Contrastando com todos os escândalos de corrupção nacional, o país é literalmente fonte da maior pureza no ar e no verde da sua floresta, e metaforicamente, na sabedoria shamanica dos índios. Ayahuasca é reconciliação na esfera da vida pessoal, universal e cósmica, trazendo a consciência da conexão de cada um com a criação. A rede que tudo liga e irmana, muitas vezes aparece como sentido prateado e transparente entre todos os coraçōes.
Enquanto reconciliação, Ayahuasca é Perdão.
Pensei que um dia esse Perdão se ramificaria através do mundo, remendando a cisão feia e pretensiosa entre os homens e o planeta; a divisão que dá, aos primeiros, a posição de exploradores, transformando o segundo em campo de depredação. Mas, enquanto nossos índios corajosamente levam a mensagem do sacramento da floresta a outros países, na paciência infinitamente humilde de mostrar a luz aos civilizados, quer dizer, ensinar aqueles que se consideram seus superiores, ha quem os mate por interesse material, em seu próprio território.
Com muita tristeza e revolta, venho vendo, mais e mais frequentes, noticias da “vista grossa” ao genocídio de índios e desmatamento  da floresta, com a sanção do governo brasileiro. O aumento da concentração de gás carbônico, contribuindo para o efeito estufa, resulta também da substituição de áreas florestais por pastos de agropecuária e construção de barragens, dando ao Brasil quarto lugar entre os maiores emissores de gases que causam esse problema.
Parece que não contentes em ser notícia internacional através de roubos e escândalos políticos, brasileiros ainda correm para dar, em seu próprio país, o golpe de misericórdia: a destruição da própria inocência. Pois o Brasil tem, nas culturas indígenas, a inocência em estado “puro”: a vida, independente de direitos burocráticos de posse, a vida “sem lenço e sem documento”, pois que nascida da espontânea interação dos nativos com a terra e a água, ao invés da conquista e  opressão sempre presentes na origem das naçōes formadas pela civilização. Mas despreza-se, entretanto, os nativos, a sua sabedoria  shamanica imemorial, e o potencial poder de cura da própria floresta, tripudiando-se suas mais genuínas raizes, para se igualar, no pretexto de busca pelo progresso, ao lado negro da civilização; `a ganância pelo dinheiro.
Acorda, Brasil! Será que mesmo diante das calamidades ecológicas resultantes do reverenciado “progresso”, não da pra tentar rumos diferentes? Quando se poderá ver que, mesmo sem dinheiro, é mais rico o território que contem metade da biodiversidade do mundo, e a possibilidade mágica, para não dizer, transcendente, de salvação?
Pois, Ayahuasca transcende. Já ouvi céticos dizer, depois de experimentar o chá, “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”
O Brasil será campeão se, ao invés de participar da corrida apocalíptica construindo represas, ou de se afirmar com  futibol e  carnaval, promover e proteger a unicidade milagrosa do seu próprio solo.