Os dois pensavam demais, questionavam tudo, e concluíam um trilhão de teorias tão opostas entre si quanto as realidades em que eles viviam. Quando papai soube que eu já tinha tido cinquenta aulas de motorista e estava longe de me sentir preparada para fazer o exame, disse que eu procurasse um médico que examinasse minha cabeça. Por causa do meu ritmo lento, excessivamente introspectivo, mamãe, por outro lado, achava que eu vivia na dimensão contemplativa, e chegava ao ponto de ver em mim uma re incarnação do Egito antigo. Muitas vezes, com a sua firme convicção de que qualquer um, tendo oportunidade, pode fazer as coisas direito, ela ajudou pessoas de que nada se esperava, com bons resultados. Naquela vez em que a encontrei no meio da pequena rua em que morávamos, ouvindo as queixas de um cara pobremente vestido, que enxugava as lagrimas, dizendo que mesmo estando ele perto de ser pai, ninguém queria lhe dar emprego, só porque tinha ficha na policia - devido claro, a um mal-entendido- ela acabava de contratá-lo para que continuasse minhas aulas de dirigir. Assim, tanto eu, que ja estava envergonhada de aparecer na auto-escola, quanto ele, ganhávamos nova chance. Depois de me dar um mês de lições diárias, numa escola de direção bem recomendada no Rio, o instrutor que me fora designado delicadamente me mandou desistir. Numa manhã de calor e mormaço, enquanto ele catava as balizas que derrubei, eu olhava para o céu acinzentado, e pensando em tudo que não fosse os minutos que ainda teria pela frente até poder voltar pra casa, surpreendi-me, quando ouvi, do lado de fora da janela do carro, "Estrelinha..." "...Como?", perguntei, sem entender nada. "Você é uma estrelinha" continuou o instrutor" não é deste mundo... Melhor desistir de dirigir..."
Depois disso passei a ter sonhos repetidos de extrema liberdade, como quando se sonha que se está voando, só que ao invés de tal proeza, eu simplesmente sonhava dirigir sozinha!
Certo ou não no seu "diagnóstico", o instrutor pelo menos me comparou a um corpo celeste, como se entre a posição médica de papai, e a espiritual de mamãe, ele ficasse no meio.
A escola para que trabalhava também me aconselhou desistir, acho que ja estavam sem graça de me manter na sua lista, sem nunca conseguir marcar data pro exame.
Devo aqui informar que papai, tendo uma vez que tomar conta de mim quando eu era pouco maior que um bebe, chegou a sua inabalável conclusão de que eu era diferente, pra não dizer, estranha. Concluiu, daquela sessão de babá, que eu não tinha instinto de sobrevivência. Pra ele, tudo vinha de causas físicas, enquanto pra mamãe, tudo respondia a motivos transcendentais. Em relação a qualquer deficiência que eu tivesse, eu obviamente preferia acreditar nas explicações dela, mas mesmo assim, ja estava morrendo de vergonha. Na verdade, ele havia concluído que eu era diferente, desde a vez em que teve que tomar conta de mim no seu estúdio, quando eu tinha pouco mais de dois anos. Mamãe havia saído por alguns momentos, e pedido a ele que não tirasse os olhos de mim. Sem desviar o foco do bebe que eu era, na louca e repetida aventura de subir os degraus de uma escada de pedreiro, que, com meu peso, levemente se desprendia da parede em que estava encostada, a caminho de cair sobre mim no chão, ele prontamente me tirou do degrau médio que eu conseguira atingir, e disse: " Não sobe nessa escada que ela cai em cima de você"! Mas eu subi novamente, me empoleirei na escada que já se despregava da parede, e meu pai me tirou a tempo, "Não disse? Ia cair em cima de você e no chão, será que vc não vê?!"
Na terceira vez em que repeti a mesma "façanha", papai ficou assistindo. Adorava assistir, e avaliar o comportamento humano. Quando viu a escada desabar, achou que só assim eu iria aprender, e entre as minhas lágrimas e a bronca que levou de mamāe por causa das manchas rochas no meu corpo, explicou a ela, que mal acabava de chegar, "... Essa menina não tem instinto de sobrevivência!...", "Como pode você concluir isso de uma criancinha? Você que é louco, pensa que pode ser cientista de laboratório enquanto toma conta da criança!"
Mas papai nunca deserdava os diagnósticos que fazia, e diante de muitas coisas em minha vida, como estudar filosofia, repetiu que a escolha se devia ao fato de eu não ter instinto de sobrevivência.
De volta ao suspeito que mamãe contratou para meu treino extensivo no volante, o cara usava uma camisa verde luminoso, acentuando o inchaço branco prestes a explodir das varias espinhas do seu rosto, mas ele se dava ares de todo entendido em tudo e de dono da rua. Pelo menos dentro do fusca velho em que dirigíamos eu tinha que o vê-lo como superior a mim, afinal eu dependia dele. A porta do lado esquerdo do carro abria sozinha em cada curva pra direita, e eu conseguia segura-la ao fazer a curva. Enquanto isso, o instrutor dava socos irritados na sua própria porta, ja que o carro não tinha buzina, quando ele via e gritava para as pessoas idosas atravessando alguma rua do caminho a seguir " Será que isso aqui é a passarela da velhice???" E tocava a socar a porta.
Depois de mais dois anos, em que fui à
faculdade que cursava com aquele cara do lado me dizendo quando acelerar,
quando virar aqui ou ali, quais os espaços em que o carro devia entrar, e nos quais eu nunca pensei que caberia, mamãe percebeu que o cara, com a desculpa de levar o
veículo pra concertar, desviava dinheiro dela com frequência. E eu, ainda longe de poder
dirigir. Ele falhou sua nova chance, e eu fui aconselhada a insistir. Mamãe contratou outro renegado. Este, depois de seis meses, falou que eu
nunca iria dirigir. Afora minha nulidade em me orientar, o carro, em que,
quando nele, fica cheio dos meus pensamentos, horizontes e divagaçōes, me
parece até hoje, depois que dirijo há trinta anos, muito grande para
tudo lá fora, que por sua vez me aparece diminuído, abstraído mesmo,
à volta do veículo. Mas eu consegui dirigir, mesmo tendo comprado a carteira. Consegui porque quis morar na frente do mar, numa praia que na época era num bairro deserto. Mas sempre foi a minha praia preferida. Como sempre, dei um pulo maior que a perna, e tive que aterrissar com muito esforço.
No comments:
Post a Comment