Sempre quis experimentar um alucinógeno,
ao mesmo tempo que tinha o medo mais comum, o de “não voltar” da viagem. Mas não podia deixar essa página passar em
branco, principalmente sabendo que Aldous Huxley mencionou, como efeito da
mescalina, o alcance de uma visão “sacramental da realidade”. Busca de Deus, e busca de me conhecer melhor
se identificavam, numa urgência em comum. Mas depois que li o livro de Sting relatando
sua experiencia no Daime, e o quanto
sofreu vomitando, antes de poder receber qualquer revelação do sacramento da floresta, como os nativos chamam Ayahuasca, pensei que nunca chegaria perto dele.
Como a maioria das pessoas, odeio vomitar.
Talvez pudesse então tentar o peyote… Chris, meu filho, havia me recomendado um livro que fala de todas essas plantas no seu contexto shamanico, e eu, marinheiro de primeira vez, queria estrutura, na companhia de
pessoas experientes que saberiam como ajudar quem por acaso ficasse numa "bad trip", ou
de algum modo afundasse na loucura. Entretanto, uma vez em que estava no Rio e
ouvi, de alguém vinculado ao centro de estudos shamanicos, que haveria um
ritual Huni Kuin de Ayahuasca naquele sábado, dali a somente dois dias, surpreendi-me com a certeza instantânea e imediata
de que eu seria um dos participantes.
Sem nem tentar justificar, ou
compreender porque e como mudei, eu só sabia que nada e ninguém no mundo iria
me impedir faze-lo.
Me disseram que os Huni-Kuin são índios que
moram na Amazonia, de onde se originou o Ayahuasca, e alguns deles vinham para a cidade
conduzir os rituais de acordo com a sua tradição, que chamam de Nixi Pae. Na época, eu só me interessava pela
substancia que iria alterar a minha mente, imaginando, com a típica postura mental
da civilização, que esta substancia era o que era independentemente de qualquer contexto, e atuava nas pessoas por si própria,`a parte do pajé que interagia com ela. Por isso, eu não tinha ideia da minha sorte em
chegar ao Ayahuasca através dos índios, assim como não podia imaginar a
importância do pajé conduzir a cerimonia,
ou a influencia individual de cada um deles no modo com que age o poder do chá:
a força,
como eles dizem.
Assim, naquela linda noite de verão em que eu estava de visita no Rio, me
encontrei numa sala grande e envidraçada, diante da floresta da Tijuca, entre
umas trinta pessoas sentadas em circulo `a volta de um índio bem moço, de
bata, e um enorme cocar na cabeça. Fui informada, por um dos guardiões (pessoas
treinadas para ajudar aqueles que precisassem) que aquele índio pajé cantaria
para chamar a força, logo depois da primeira servida do chá. Mesmo com a
convicção que me levara até ali, eu estava morrendo de medo, e não conseguia parar de fazer perguntas aos guardiões. Podia
se vomitar em qualquer dos baldes espalhados pela sala, e usar o banheiro do
lado se preciso, e para qualquer mal estar excessivo os guardiões saberiam ajudar. Disseram
que o Ayahuasca nos mostra quem somos, e
esse encontro consigo mesmo e também com o mais alem, dentro de si mesmo, é um
“trabalho” e não uma fuga ou diversão. Por
isso era bom nos focar nas interrogações que tivéssemos sobre caminhos a tomar em nossa vida, ou sobre nós mesmos…
Tentei apaziguar tanto o medo da rebordosa
física, quanto o do mistério da mente, lembrando-me que a instantânea convicção que
senti de querer experimentar o chá, depois de ter tido certeza de que nunca chegaria perto dele, só podia ser mesmo um chamado. De fato. Foi maravilhoso. Só vou mencionar dos espíritos, das cores
infinitas, e dos ângulos de outras dimensões na eternidade das perspectivas que vi, a aparição do rosto de Cristo,
luminoso, com uma gota de sangue de um vermelho vivo e pulsante escorrendo do
lado logo abaixo do olho direito, assim como eu em criança pintei no rosto sagrado que
desenhei.
Na época em que primeiro tomei Ayahuasca, eu estava justamente
voltando a desenhar, depois de muitos anos em que pensava ter parado pra
sempre. A aparição de Cristo vinculada ao meu desenho parecia confirmar a identificação que sempre fiz entre o auto-sacrifício da missão artística, que não é nem pragmática nem necessariamente compensada pelo dinheiro, `a missão Cristã, quer dizer, `a realização de uma busca ditada por uma vontade além do próprio artista, ao mesmo tempo que é descoberta da essência deste. O verdadeiro Julgamento Final, como disse Proust.
De modo geral, a melhora que senti com
aquela primeira vez foi uma renovação da minha relação com a finitude, e um ressurgir de fé. Ayahuasca elimina a polaridade entre este mundo e o outro, o visível e o invisível, a matéria e o
espírito. O tranco inicial que nos dá corresponde `a destruição do reino racional que escraviza nossa percepção do mundo através do julgamento, quer dizer, do que nos
permite compreender a realidade por meio da divisão e da oposição entre opostos, daquilo que é através do que não é e vice-versa, mas nunca do que é em si. A compreensão racional da realidade concerne a relativização, para não dizer banalização,
de tudo. Mas Ayahuasca nos mostra que a dimensão cósmica, como a libertação da prisão aos padrões de medida que classificam e rotulam o nosso mundo, tudo permea, a despeito de nossos limites mentais de um mundo que compreendemos em função da sobrevivência, da divisão entre o que nos é útil ou não, perigoso ou tranquilo, ruim ou bom.
Por
isso, mostra o que é imenso sem ter
tamanho, o que é presente na distancia, e o inacessivelmente profundo na mais intensa proximidade, como o Julgamento
Final que trouxe ao meu conhecimento uma vez.
Do mesmo modo, o grotesco e o sublime frequentemente se identificam, como na visão que tive da redenção do diabo, num outro ritual.
Na esfera do sagrado em que vive o
Ayahuasca, cada coisa, cada entidade, é
um ser em si, um absoluto não comparável, um “todo”, vivendo no todo. Um sendo espelho do outro.
Quem sabe, Deus não é o
espelhar de si mesmo?
Depois
dessa primeira vez, há mais de sete anos, participei de muitos rituais, e vim
observando a naturalidade com que os índios convivem com o sagrado e o profano igualmente,
talvez porque pra eles, o sobreviver e o estado de oração se identifiquem: os
animais que adoram e simbolizam entidades de poder, são também comidos por
eles. Sem conhecer a opulência, o
desperdício, e o armazenamento de bens para o futuro, seja comida ou dinheiro,
eles naturalmente respeitam o que tem no presente; podem ver no seu pão, o “pão
nosso de cada dia.”
Vivendo assim, com a dimensão mítica e
espiritual enraizada na sua vida fisica,
os indios tem estrutura, sem precisar
regras. Por isso, ao contrário da
regimentação das cerimonias de Ayahuasca conduzidas por civilizados, o ritual
indígena tem liberdade e ao mesmo tempo disciplina. Você pode ser você, pode sentar
do jeito que quiser, tomar o quanto quiser, e ficar na sua, chorando ou
rindo:os índios sabem respeitar a dimensão individualista do Ayahuasca, talvez
por justamente não sentirem nisso uma ameaça `a sua consciência de grupo. O civilizado, por outro lado, tem que agrupar
`a custa de regras que igualem o comportamento de todos, ou então separar, `a
custa de reconhecer conflitos.
Acho que só os índios sabem respeitar naturalmente o
individualismo infinito de Ayahuasca, ao mesmo tempo que o seu poder cósmico de
tornar consciente a nossa conexão com tudo e com todos, (que muitas vezes aparece visualmente) quer dizer, o fato de que
na verdade somos menos que um grão de
areia, mas somos, como disse o poeta Manoel Thiago de Mello, "Estrelas de um só momento, mas cujo brilho afeta a ordem do firmamento".
Ayahuasca me ensinou que o indivíduo não é parte do todo: ele é com
o todo. Me ensinou que nada é parte de
nada, pois cada coisa é em si.
Esse socorro não vem fácil. Na
passagem da percepção trivial para a esfera sagrada da não relativização, a planta tem que nos
“destruir” e recriar, e cada pessoa
apanha a surra que merece.
Ayahuasca da a cada um a lição que precisa para se tornar digno de ver, no pão que tira da cesta cheia, o “ Pão Nosso de
Cada Dia”.
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