Wednesday, October 30, 2019

Ayahuasca: Ele ou Ela?




   Acho interessante a tendencia a atribuir gêneros (masculino ou feminino) a entidades, como o mar, os rios, o céu, e, revertendo ao título, o/a Ayahuasca. Não estou criticando essa tendencia, porque eu mesma atribuo gêneros, a partir da minha língua original. Mar, em português, é o mar, ao passo que em francês, é la mer. Embora a língua inglesa neutralize, com o artigo the,  grande parte da divisão entre gêneros, em contextos verbais mais íntimos,  se vê obrigada a atribuir um she, ou um he, ao que em principio seria somente um it. Assim, no filme Disney Nature, sobre o mar este virou  um she, que eu não conseguia aceitar, não só por causa da nossa língua portuguesa, mas porque vejo naquela força imensa de água indomada, o poder exclusivo de invasão viril. Em fotografias que se pretendem sensuais, por exemplo, ja vi mulheres  sentadas de pernas abertas, rente `as aguas salgadas,  enquanto a espuma de alguma onda furiosa parece novamente explodir de encontro ao sexo delas. Vejo, na sensualidade desse encontro,  a completude da união do poder masculino de invasão, com a aceitação da entrega feminina. Se eu olhasse o mar como outra ela,  aquela sensualidade teria um tom masturbatório, e ao invés de expressar completude, expressaria, talvez, narcisismo. 
   Em relação a automóveis, que pra nós brasileiros, são eles,  viram elas  para os americanos, quando estes, orgulhosos do seu veiculo, tentam personaliza-lo, “she  goes really fast…”, ja ouvi um cara dizer, dando tapinhas na “bunda” do Porsch novo que havia comprado, como se ele fosse sua nova namorada. 
   Mesmo sabendo de varias justificações psicológicas para tal sublimação, fico me perguntando como que um veículo, cujo poder na velocidade é de “furar” o ar ao se propelir pra dentro das extensões que transpõe, vem a ser tratado como ela. O mesmo acho no tocante a navios, barcos, aviões, trens, e foguetes espaciais, antes mesmo de saber como são tratados, na lingua X ou Y. 
   Sei que tenho certa relutância em atribuir o gênero feminino ao que pode ser neutro, por este permitir as pessoas ficarem “fofas” e piegas, em relação `a entidade em questão. Mãe natureza, por exemplo, me soa super piegas. Na sua lei do mais forte, no constante processo natural  do bicho maior, ou mais poderoso, comer o menor, a natureza não maternaliza ninguém, acho que, ao contrário, sua mensagem, de extrema dureza, vai mais na linha agressiva e guerreira de Nietzsche, “o que não mata, torna mais forte”. Posso olhar a natureza como ela, mas não como mãe. A artificialidade sim, pode ser protetora e envolvente, afora o fato de ter primeiramente surgido para tornar a sobrevivência mais fácil, para amaciar a natureza. Se pegou a rédea nos dentes, e em muitos aspectos virou destruição, ja se trata de uma degeneração, e pertence a outro assunto.
   Quando comecei a participar dos rituais de Ayahuasca com os índios Huni-Kuin, não pensava duas vezes ao me referir ao cha como o Ayahuasca, antes mesmo de saber que na mitologia desses índios, ele é tido como o seu primeiro pajé, aquele que, na estória que contam, foi morar com a Jiboia no fundo do lago, e tendo retornado doente para o seu povo, instruiu a todos que quando morresse eles misturassem as plantas que nasceriam do lado de sua rede, fazendo um chá que lhes traria todo o conhecimento que ele havia aprendido com a Jiboia no fundo do lago. Quando bebemos o chá, disse-me Bane, estamos bebendo aquele primeiro pajé. 
   Entretanto, através dos anos, tenho ouvido Ayahuasca ser chamado/a de mamacita, (mamãezinha) em canções ocidentais açucaradas, ou de Grandmother (avó) e por aí afora. Explicam que o feminino é o que cria, como a natureza,  e Ayahuasca é a voz da natureza, a voz da floresta.  Tudo bem, mas essa criação é física e imediata, do mesmo jeito que nós somos também físicos e nascidos do imediatismo dos processos biológicos.
   Mas o que dizer sobre a criação de ideias e de tudo que nasce do pensamento abstrato? 
   Homens não parem filhos, mas através da historia, vemos que existiu maior número de grandes escritores do que escritoras, escultores do que escultoras, filósofos do que filosofas, músicos do que músicas, empreendedores inovadores do que empreendedoras, maior quantidade de descobertas cientificas feitas por homens do que por mulheres, e mesmo que isso tenha sido em parte por causa da cultura sempre machista que não dava a mesma chance para as mulheres, e pelo fato destas empenharem grande tempo de sua vida tendo filhos, os homens realmente se provaram criadores. Mas, certamente por causa da situação do planeta, tudo que se fala é o sagrado feminino.
   Mais do que simplesmente forte, o poder do Ayahuasca, longe de ser como o de uma “mamãezinha”,  é violento e destruidor de todos os nossos engodos e defesas mentais. É o poder que nos bota, impiedosamente, cara a cara com a dor de que mais nos escondemos.
   Na sua  autenticidade orgânica, Ayahuasca é sim a voz da floresta, das plantas, dos animais. Na sua dimensão dionisíaca, de nos reduzir por instantes ao tumulto de nossas vísceras, o chá tem mesmo a fisicalidade da natureza, da fonte feminina de criação. Mas na sua dimensão cósmica, que destrói os limites das nossas noções de medida,  de comparações entre alto e baixo, grande e pequeno, grotesco e sublime, através da magnitude que dá aos nossos cinco sentidos, e de seu poder de revelar cada visão que nos mostra como uma realidade em si mesma, Ayahuasca elimina a relatividade com que percebemos o “nosso” mundo e nos leva ao espírito, `a criação imaterial.
   Voz de Deus e voz da terra, Ayahuasca não é simplesmente “mamãezinha”, tampouco, “vovó”, mas o Ele terrível e a Ela visceral; o pai, a mãe, o filho, e o espirito santo.

 Na linha dessa sua verdade não ha, entre os seres humanos,  nada mais bonito do que a delicadeza feminina no homem viril, e a firmeza masculina na mulher delicada.

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