Thursday, October 31, 2019

Papai e Mamãe


        
     
   Os dois pensavam demais, questionavam tudo, e concluíam um trilhão de teorias tão opostas entre si quanto as  realidades em que eles viviam.   Quando papai soube que eu já tinha tido cinquenta aulas de motorista e estava longe de me sentir preparada para fazer o exame, disse que eu procurasse um médico que examinasse minha cabeça. Por causa do meu ritmo lento, excessivamente introspectivo, mamãe, por outro lado, achava que eu vivia na dimensão contemplativa, e chegava ao  ponto de ver em mim uma re incarnação do Egito antigo. Muitas vezes, com a sua firme convicção de que qualquer um, tendo oportunidade, pode fazer as coisas direito, ela ajudou pessoas de que nada se esperava, com bons resultados.  Naquela vez em que a encontrei no meio da pequena rua em que morávamos, ouvindo as queixas de um cara pobremente vestido, que enxugava as lagrimas, dizendo que mesmo estando ele perto de ser pai, ninguém queria lhe dar emprego, porque tinha ficha na policia - devido claro, a um mal-entendido- ela acabava de contratá-lo para que continuasse minhas aulas de dirigir.  Assim, tanto eu, que ja estava envergonhada de aparecer na auto-escola, quanto ele, ganhávamos nova chance.  Depois de me dar um mês de lições diárias, numa escola de direção bem recomendada no Rio, o instrutor que me fora designado delicadamente me mandou desistir. Numa manhã de calor e mormaço, enquanto ele catava as balizas que derrubei, eu olhava para o céu acinzentado, e pensando em tudo que não fosse os minutos que ainda teria pela frente até poder voltar pra casa, surpreendi-me, quando ouvi, do lado de fora da janela do carro, "Estrelinha..." "...Como?", perguntei, sem entender nada. "Você é uma estrelinha" continuou o instrutor" não é deste mundo... Melhor desistir de dirigir..."
Depois disso passei a ter sonhos repetidos de extrema liberdade, como quando se sonha que se está voando, só que ao invés de tal proeza, eu simplesmente sonhava dirigir sozinha!
   Certo ou não no seu "diagnóstico",  o instrutor pelo menos me comparou a um corpo celeste,  como se entre a posição médica de papai, e a espiritual de mamãe, ele ficasse no meio. 
   A escola para que trabalhava também me aconselhou  desistir, acho que ja estavam sem graça de me manter na sua lista, sem nunca conseguir marcar data pro exame.
Devo aqui informar que papai, tendo uma vez que tomar conta de mim quando eu era pouco maior que um bebe, chegou a sua inabalável conclusão de que eu era diferente, pra não dizer, estranha. Concluiu, daquela sessão de babá, que eu não tinha instinto de sobrevivência. Pra ele, tudo vinha de causas físicas, enquanto pra mamãe, tudo respondia a motivos transcendentais. Em relação a qualquer deficiência que eu tivesse, eu obviamente preferia acreditar nas explicações dela, mas mesmo assim, ja estava morrendo de vergonha. Na verdade, ele havia concluído que eu era diferente, desde a vez em que teve que tomar conta de mim no seu estúdio, quando eu tinha pouco mais de dois anos. Mamãe havia saído por alguns momentos, e pedido a ele que não tirasse os olhos de mim. Sem desviar o foco do bebe que eu era, na louca e repetida aventura de subir os degraus de uma escada de pedreiro, que, com meu peso, levemente se desprendia da parede em que estava encostada, a caminho de cair sobre mim no chão, ele prontamente me tirou do degrau médio que eu conseguira atingir, e disse: " Não sobe nessa escada que ela cai em cima de você"! Mas  eu subi novamente, me empoleirei na escada que já se despregava da parede, e meu pai me tirou a tempo, "Não disse? Ia cair em cima de você e no chão, será que vc não vê?!"
Na terceira vez em que repeti a mesma "façanha", papai ficou assistindo. Adorava assistir, e avaliar o comportamento humano. Quando viu a escada desabar, achou que só assim eu iria aprender, e entre as minhas lágrimas e a bronca que levou de mamāe por causa das manchas rochas no meu corpo, explicou a ela, que mal acabava de chegar, "... Essa menina não tem instinto de sobrevivência!...", "Como pode você concluir isso de uma criancinha? Você que é louco, pensa que pode ser cientista de laboratório enquanto toma conta da criança!"
 Mas papai nunca deserdava os diagnósticos que fazia, e diante de muitas coisas em minha vida, como estudar filosofia, repetiu que a escolha se devia ao fato de eu não ter instinto de sobrevivência.
De volta ao suspeito que mamãe contratou para meu treino extensivo no volante, o cara usava uma camisa verde luminoso, acentuando o inchaço branco  prestes a explodir das varias espinhas do seu rosto,  mas ele se dava ares de todo entendido em tudo e de dono da rua. Pelo menos dentro do fusca velho em que dirigíamos eu tinha que o vê-lo como superior a mim, afinal eu dependia dele. A porta do lado esquerdo do carro abria sozinha  em cada curva pra direita,  e eu conseguia segura-la ao fazer a curva. Enquanto isso, o instrutor dava socos irritados na sua própria porta, ja que o carro não tinha buzina, quando ele via e gritava para as pessoas idosas atravessando alguma rua do caminho a seguir " Será que isso aqui é a passarela da velhice???" E tocava a socar a porta.
Depois de mais dois anos, em que fui  à  faculdade que cursava com aquele cara do lado me dizendo quando acelerar, quando virar aqui ou ali,  quais os espaços em que o carro devia entrar, e nos quais eu nunca pensei que caberia, mamãe percebeu que o cara, com a desculpa de levar o veículo pra concertar, desviava dinheiro dela com frequência. E eu, ainda longe de poder dirigir. Ele falhou sua nova chance, e eu fui aconselhada a insistir. Mamãe contratou outro renegado. Este, depois de seis meses, falou que eu nunca iria dirigir. Afora minha nulidade em me orientar, o carro, em que, quando nele, fica cheio dos meus pensamentos, horizontes e divagaçōes, me parece até hoje, depois que dirijo há trinta anos, muito grande para tudo lá fora, que por sua vez me aparece diminuído, abstraído mesmo, à  volta do veículo.  
   Mas eu consegui dirigir, mesmo tendo comprado a carteira. Consegui porque quis morar na frente do mar, numa praia  que na época era num bairro deserto. Mas sempre foi a minha praia preferida. Como sempre, dei um pulo maior que a perna, e tive que aterrissar com muito esforço.
  



Wednesday, October 30, 2019

Ayahuasca: Ele ou Ela?




   Acho interessante a tendencia a atribuir gêneros (masculino ou feminino) a entidades, como o mar, os rios, o céu, e, revertendo ao título, o/a Ayahuasca. Não estou criticando essa tendencia, porque eu mesma atribuo gêneros, a partir da minha língua original. Mar, em português, é o mar, ao passo que em francês, é la mer. Embora a língua inglesa neutralize, com o artigo the,  grande parte da divisão entre gêneros, em contextos verbais mais íntimos,  se vê obrigada a atribuir um she, ou um he, ao que em principio seria somente um it. Assim, no filme Disney Nature, sobre o mar este virou  um she, que eu não conseguia aceitar, não só por causa da nossa língua portuguesa, mas porque vejo naquela força imensa de água indomada, o poder exclusivo de invasão viril. Em fotografias que se pretendem sensuais, por exemplo, ja vi mulheres  sentadas de pernas abertas, rente `as aguas salgadas,  enquanto a espuma de alguma onda furiosa parece novamente explodir de encontro ao sexo delas. Vejo, na sensualidade desse encontro,  a completude da união do poder masculino de invasão, com a aceitação da entrega feminina. Se eu olhasse o mar como outra ela,  aquela sensualidade teria um tom masturbatório, e ao invés de expressar completude, expressaria, talvez, narcisismo. 
   Em relação a automóveis, que pra nós brasileiros, são eles,  viram elas  para os americanos, quando estes, orgulhosos do seu veiculo, tentam personaliza-lo, “she  goes really fast…”, ja ouvi um cara dizer, dando tapinhas na “bunda” do Porsch novo que havia comprado, como se ele fosse sua nova namorada. 
   Mesmo sabendo de varias justificações psicológicas para tal sublimação, fico me perguntando como que um veículo, cujo poder na velocidade é de “furar” o ar ao se propelir pra dentro das extensões que transpõe, vem a ser tratado como ela. O mesmo acho no tocante a navios, barcos, aviões, trens, e foguetes espaciais, antes mesmo de saber como são tratados, na lingua X ou Y. 
   Sei que tenho certa relutância em atribuir o gênero feminino ao que pode ser neutro, por este permitir as pessoas ficarem “fofas” e piegas, em relação `a entidade em questão. Mãe natureza, por exemplo, me soa super piegas. Na sua lei do mais forte, no constante processo natural  do bicho maior, ou mais poderoso, comer o menor, a natureza não maternaliza ninguém, acho que, ao contrário, sua mensagem, de extrema dureza, vai mais na linha agressiva e guerreira de Nietzsche, “o que não mata, torna mais forte”. Posso olhar a natureza como ela, mas não como mãe. A artificialidade sim, pode ser protetora e envolvente, afora o fato de ter primeiramente surgido para tornar a sobrevivência mais fácil, para amaciar a natureza. Se pegou a rédea nos dentes, e em muitos aspectos virou destruição, ja se trata de uma degeneração, e pertence a outro assunto.
   Quando comecei a participar dos rituais de Ayahuasca com os índios Huni-Kuin, não pensava duas vezes ao me referir ao cha como o Ayahuasca, antes mesmo de saber que na mitologia desses índios, ele é tido como o seu primeiro pajé, aquele que, na estória que contam, foi morar com a Jiboia no fundo do lago, e tendo retornado doente para o seu povo, instruiu a todos que quando morresse eles misturassem as plantas que nasceriam do lado de sua rede, fazendo um chá que lhes traria todo o conhecimento que ele havia aprendido com a Jiboia no fundo do lago. Quando bebemos o chá, disse-me Bane, estamos bebendo aquele primeiro pajé. 
   Entretanto, através dos anos, tenho ouvido Ayahuasca ser chamado/a de mamacita, (mamãezinha) em canções ocidentais açucaradas, ou de Grandmother (avó) e por aí afora. Explicam que o feminino é o que cria, como a natureza,  e Ayahuasca é a voz da natureza, a voz da floresta.  Tudo bem, mas essa criação é física e imediata, do mesmo jeito que nós somos também físicos e nascidos do imediatismo dos processos biológicos.
   Mas o que dizer sobre a criação de ideias e de tudo que nasce do pensamento abstrato? 
   Homens não parem filhos, mas através da historia, vemos que existiu maior número de grandes escritores do que escritoras, escultores do que escultoras, filósofos do que filosofas, músicos do que músicas, empreendedores inovadores do que empreendedoras, maior quantidade de descobertas cientificas feitas por homens do que por mulheres, e mesmo que isso tenha sido em parte por causa da cultura sempre machista que não dava a mesma chance para as mulheres, e pelo fato destas empenharem grande tempo de sua vida tendo filhos, os homens realmente se provaram criadores. Mas, certamente por causa da situação do planeta, tudo que se fala é o sagrado feminino.
   Mais do que simplesmente forte, o poder do Ayahuasca, longe de ser como o de uma “mamãezinha”,  é violento e destruidor de todos os nossos engodos e defesas mentais. É o poder que nos bota, impiedosamente, cara a cara com a dor de que mais nos escondemos.
   Na sua  autenticidade orgânica, Ayahuasca é sim a voz da floresta, das plantas, dos animais. Na sua dimensão dionisíaca, de nos reduzir por instantes ao tumulto de nossas vísceras, o chá tem mesmo a fisicalidade da natureza, da fonte feminina de criação. Mas na sua dimensão cósmica, que destrói os limites das nossas noções de medida,  de comparações entre alto e baixo, grande e pequeno, grotesco e sublime, através da magnitude que dá aos nossos cinco sentidos, e de seu poder de revelar cada visão que nos mostra como uma realidade em si mesma, Ayahuasca elimina a relatividade com que percebemos o “nosso” mundo e nos leva ao espírito, `a criação imaterial.
   Voz de Deus e voz da terra, Ayahuasca não é simplesmente “mamãezinha”, tampouco, “vovó”, mas o Ele terrível e a Ela visceral; o pai, a mãe, o filho, e o espirito santo.

 Na linha dessa sua verdade não ha, entre os seres humanos,  nada mais bonito do que a delicadeza feminina no homem viril, e a firmeza masculina na mulher delicada.

Tuesday, October 29, 2019

Ayahuasca: O Chamado


    Nosso primeiro e inesquecível Pajé, Txana Bane
   Sempre quis experimentar um alucinógeno, ao mesmo tempo que tinha o medo mais comum, o de “não voltar” da viagem.  Mas não podia deixar essa página passar em branco, principalmente sabendo que Aldous Huxley mencionou, como efeito da mescalina, o alcance de uma visão “sacramental da realidade”.  Busca de Deus, e busca de me conhecer melhor se identificavam, numa urgência em comum. Mas depois que li o livro de Sting relatando sua experiencia no Daime, e o quanto sofreu vomitando, antes de poder receber qualquer revelação do sacramento da floresta, como os nativos chamam Ayahuasca,  pensei que nunca chegaria perto dele.  
   Como a maioria das pessoas, odeio vomitar. Talvez pudesse então tentar o peyote…  Chris, meu filho, havia me recomendado um livro que fala de todas essas plantas no seu contexto shamanico, e eu, marinheiro de primeira vez, queria estrutura, na companhia de pessoas experientes que saberiam como ajudar quem por acaso ficasse numa "bad trip", ou de algum modo afundasse na loucura.  Entretanto, uma vez em que estava no Rio e ouvi, de alguém vinculado ao centro de estudos shamanicos, que haveria um ritual Huni Kuin de Ayahuasca naquele sábado, dali a somente dois dias,  surpreendi-me com a certeza instantânea e imediata de que eu seria um dos participantes.   
  Sem nem tentar justificar, ou compreender porque e como mudei, eu só sabia que nada e ninguém no mundo iria me impedir faze-lo.
   Me disseram que os Huni-Kuin são índios que moram na Amazonia, de onde se originou o Ayahuasca, e alguns deles vinham para a cidade conduzir os rituais de acordo com a sua tradição,  que chamam de Nixi Pae. Na época, eu só me interessava pela substancia que iria alterar a minha mente, imaginando, com a típica postura mental da civilização, que esta substancia era o que era independentemente de qualquer contexto, e atuava nas pessoas por si própria,`a parte do pajé que interagia com ela. Por isso, eu não tinha ideia da minha sorte em chegar ao Ayahuasca através dos índios, assim como não podia imaginar a importância do pajé conduzir a cerimonia, ou a influencia individual de cada um deles no modo com que age o poder do chá: a  força, como eles dizem.
    Assim, naquela linda noite de verão em que eu estava de visita no Rio, me encontrei numa sala grande e envidraçada, diante da floresta da Tijuca, entre umas trinta pessoas sentadas em circulo `a volta de um índio bem moço, de bata, e um enorme cocar na cabeça. Fui informada, por um dos guardiões (pessoas treinadas para ajudar aqueles que precisassem) que aquele índio pajé cantaria para chamar a força, logo depois da primeira servida do chá. Mesmo com a convicção que me levara até ali, eu estava morrendo de medo, e não conseguia parar de fazer perguntas aos guardiões. Podia se vomitar em qualquer dos baldes espalhados pela sala, e usar o banheiro do lado se preciso, e para qualquer mal estar excessivo os guardiões saberiam ajudar. Disseram que o Ayahuasca nos mostra quem somos,  e esse encontro consigo mesmo e também  com o mais alem, dentro de si mesmo, é um “trabalho” e não uma fuga ou diversão.  Por isso era bom nos focar nas interrogações que tivéssemos sobre caminhos a tomar em nossa vida, ou sobre nós mesmos…
   Tentei apaziguar tanto o medo da rebordosa física, quanto o do mistério da mente, lembrando-me que a instantânea convicção que senti de querer experimentar o chá, depois de ter tido certeza de que nunca chegaria perto dele, só podia ser mesmo um chamado.  De fato. Foi maravilhoso.  Só vou mencionar dos espíritos, das cores infinitas, e dos ângulos de outras dimensões na eternidade das perspectivas que vi, a aparição do rosto de Cristo, luminoso, com uma gota de sangue de um vermelho vivo e pulsante escorrendo do lado logo abaixo do olho direito, assim como eu em criança pintei no rosto sagrado que desenhei. 
   Na época em que primeiro tomei Ayahuasca, eu estava justamente voltando a desenhar, depois de muitos anos em que pensava ter parado pra sempre. A aparição de Cristo vinculada ao meu desenho parecia confirmar a identificação que sempre fiz entre o auto-sacrifício da missão artística, que não é nem pragmática nem necessariamente compensada pelo dinheiro, `a missão Cristã, quer dizer, `a realização de uma busca ditada por uma vontade além do próprio artista, ao mesmo tempo que é descoberta da essência deste. O verdadeiro Julgamento Final, como disse Proust.
    De modo geral, a melhora que  senti  com aquela primeira vez foi uma renovação da minha relação com a finitude, e um ressurgir de fé.  Ayahuasca elimina a polaridade entre este mundo e o outro,  o visível e o invisível, a matéria e o espírito. O tranco inicial que nos dá corresponde `a destruição do reino racional que escraviza nossa percepção do mundo através do julgamento, quer dizer, do que nos permite compreender a realidade por meio da divisão e da oposição entre opostos, daquilo que é através do que não é e vice-versa, mas nunca do que é em si. A compreensão racional da realidade concerne a relativização, para não dizer banalização, de tudo.  Mas Ayahuasca nos mostra  que a dimensão cósmica, como a libertação da prisão aos padrões de medida que classificam e rotulam o nosso mundo, tudo permea, a despeito de nossos limites mentais de um mundo que compreendemos em função da sobrevivência, da divisão entre o que nos é útil ou não, perigoso ou tranquilo, ruim ou bom. 
   Por isso,  mostra o que é imenso sem ter tamanho, o que é presente na distancia,  e o inacessivelmente profundo na mais intensa proximidade,  como o Julgamento Final que trouxe ao meu conhecimento uma vez. 
   Do mesmo modo, o grotesco e o sublime frequentemente se identificam,  como na visão que tive da redenção do diabo, num outro ritual.
    Na esfera do sagrado em que vive o Ayahuasca,  cada coisa, cada entidade, é um ser em si, um absoluto não comparável, um “todo”, vivendo no todo.  Um sendo espelho do outro.

Quem sabe, Deus não é o espelhar de si mesmo?

    Depois dessa primeira vez, há mais de sete anos, participei de muitos rituais, e vim observando a naturalidade com que os índios convivem com o sagrado e o profano igualmente, talvez porque pra eles, o sobreviver e o estado de oração se identifiquem: os animais que adoram e simbolizam entidades de poder, são também comidos por eles.  Sem conhecer a opulência, o desperdício, e o armazenamento de bens para o futuro, seja comida ou dinheiro, eles naturalmente respeitam o que tem no presente; podem ver no seu pão, o “pão nosso de cada dia.” 
   Vivendo assim, com a dimensão mítica e espiritual enraizada  na sua vida fisica, os indios tem  estrutura, sem precisar regras.  Por isso, ao contrário da regimentação das cerimonias de Ayahuasca conduzidas por civilizados, o ritual indígena tem liberdade e ao mesmo tempo disciplina. Você pode ser você, pode sentar do jeito que quiser, tomar o quanto quiser, e ficar na sua, chorando ou rindo:os índios sabem respeitar a dimensão individualista do Ayahuasca, talvez por justamente não sentirem nisso uma ameaça `a sua consciência de grupo.  O civilizado, por outro lado, tem que agrupar `a custa de regras que igualem o comportamento de todos, ou então separar, `a custa de reconhecer conflitos.
   Acho que só os índios sabem respeitar naturalmente o individualismo infinito de Ayahuasca, ao mesmo tempo que o seu poder cósmico de tornar consciente a nossa conexão com tudo e com todos, (que muitas vezes aparece visualmente) quer dizer, o fato de que na verdade somos menos  que um grão de areia, mas somos, como disse o poeta Manoel Thiago de Mello, "Estrelas de um só momento, mas cujo brilho afeta a ordem do firmamento".
 Ayahuasca me ensinou que o indivíduo não é parte do todo: ele é com o todo.  Me ensinou que nada é parte de nada, pois cada coisa é em si.
 Esse socorro não vem fácil. Na passagem da percepção trivial para a esfera sagrada da não relativização, a planta tem que nos “destruir” e recriar,  e cada pessoa apanha a surra que merece.
 Ayahuasca da a cada um a lição que precisa para se tornar digno de ver, no pão que tira da cesta cheia, o “ Pão Nosso de Cada Dia”.